Sobre a Pintura Mural – Tiago Botelho

A condição original da pintura era, desde o início, o espaço circundante e sem limites precisos, sendo a pintura de cavalete ou a tela fixada em chassi uma invenção relativamente nova e condicionada a relações econômicas onde o objeto de arte destina-se a agradar um ciclo restrito de espectadores e,mais ainda, a pertencer a um seleto grupo de compradores, confinando-se em coleções particulares e, dependendo das políticas públicas, em coleções de museus, ou simplesmente contentando-se a ter o seu impacto reduzido por reproduções impressas em livros e revistas.

A relação primeira da pintura era o espaço ilimitado, posto que funcionava como mediadora entre as dimensões ética e estética de uma determinada cultura, e o grafite é, de certa forma, um resgate desta vontade de comunicar-se em larga escala e de forma mais direta com o tecido social que forma a civilização.

Este resgate contudo não se apresenta exclusivamente no grafite , tendo sido testemunhado em outros momentos importantes da História da Arte recente.

MURALISMO MEXICANO – ARTE E REVOLUÇÃO

Os muralistas mexicanos produziram a mais importante arte revolucionária de sentido popular ocorrida no século XX, tendo as suas propostas influenciado diversos outros países da América Latina e também Estados Unidos e Inglaterra.

Formado por um grupo atuante tanto estética quanto políticamente,os muralistas do México inundaram as paredes com torrentes imagéticas, reproduzidas das mais variadas formas: realista,alegórica, satírica, apresentando as muitas faces da sociedade mexicana com uma forte tendência social.

A concessão de total liberdade aos artistas no que dizia respeito à temática e ao estilo dado ao governo aos muralistas culminou na germinação de uma arte autêntica, crítica e altamente questionadora das noções éticas e estéticas do povo mexicano.

Através do movimento muralista, o México pôde integrar em um só arcabouço as influências européias e indígenas, fazendo da pintura mural um vetor de construção de uma identidade cultural mais diversificada e includente. Os muralistas pretendiam e conseguiram realizar uma arte aberta, educativa e para todos, superando o modelo artístico burguês da pintura de cavalete destinada às coleções particulares.

Ainda na América Latina, a parede foi um porta-voz crucial na luta contra as ditaduras militares que sufocaram a população na sua liberdade de expressão. Grupos de estudantes, filósofos, músicos, escritores e artistas foram forçados a se calar, tendo suas produções cerceadas por instrumentos de censura oficiais que não só ameaçavam a produção cultural mas os próprios artistas mesmos, através da violência policial, da tortura, do exílio e do assassinato arbitrário daqueles que ousavam desafiar o sistema vigente.

Neste contexto, onde as vias tradicionais de produção artística se encontravam minadas, a parede mais uma vez surgiu como a alternativa mais eficaz de livre expressão do grito de revolta que agonizava na garganta de toda uma geração. Muros eram pichados com mensagens subversivas, cartazes colados na calada da noite. A parede apresentou-se como a única mídia capaz de transmitir publicamente aquilo que as ditaduras pretendiam ocultar.

COM O VAZIO, PLENOS PODERES

Há também outros momentos interessantes, como o francês Yves Klein, cuja exposição “Le Vide ” consistia na entrada gradual dos expectadores em um espaço físico completamente vazio, com as paredes totalmente em branco.

O artista visava expressar o indefinível,, uma meditação sobre o espaço circundante, um retorno ao ponto zero da arte que se manifestava na relação entre o artista e a pedra nua, neste caso não uma caverna, mas quatro paredes brancas. 

Este feito, inédito até então, partilhava uma liberdade artística imensa, livre das convenções tradicionais de exposição e concepção da obra de arte. Na ocasião da abertura de “ Le Vide ” Albert Camus escreveu no caderno de visitação:”Com o Vazio, plenos poderes!”

Nada mais profético que a frase de Camus para o que haveria de acontecer nas décadas subseqüentes. A saturação do Mercado de Arte promoveu um afunilamento cada vez maior entre os Espaços tradicionais de exposição e os novos movimentos culturais surgidos no seio dos grandes centros, fazendo com que uma nova geração de artistas, muitos deles influenciados pelas posturas do punk e do hip-hop resolverem dar a cara a tapa por conta própria.

Os muralistas contemporâneos continuam, de certa forma, comportando-se como xamãs, mas nesta Era já não cultivam o menor interesse em perpetuar as relações institucionalizadas de poder, abrindo dessa forma caminho para uma Arte genuína e potencialmente transformadora.

TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

Casos como o de Keith Harring e Basquiat marcam a gênese de uma tendência cada vez mais corriqueira nos circuitos artísticos contemporâneos.

Poéticas cruas oriundas das ruas, tão despretensiosas quanto repletas de vigor e significado, passaram a ser valorizadas como grande arte, alcançando cifras estratosféricas e colocando em cheque a sinceridade das propostas, como se tratasse de mais um modismo extravagante dos marchands norte-americanos. O tempo veio provar que não.

Prova disso são artistas como Banksi e WK Interakt , que povoam os becos das cidades com a mesma fúria que expõem em grandes galerias ao redor do mundo, promovendo uma contaminação genuína entre dois pólos distintos: a cultura dos subúrbios- anárquica e marginalizada – e os circuitos das galerias, extremamente competitivo e geralmente reservado à artistas com respaldo da crítica e do mercado.

Os estênceis de Banksi conseguem transmitir com muita eficácia o sentimento de rebeldia que tomou conta das classes sociais nestes tempos de consumo desenfreado e colapso do modelo econômico neo-liberal, fazendo das paredes verdadeiros espaços de manifestação positiva do pensamento libertário, questionando cânones da cultura de massa através da apropriação dos mesmos no espaço público, transformando a rua em espaço de reflexão política. Essas estratégias são executadas na maioria das vezes no anonimato, e o resultado é consagração do espaço público como espaço possível de re-significação do mundo.

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