A Sábia Invisibilidade dos Poetas

Um quadro só fica pronto quando eu sinto que poderia seguir pintando-o para sempre. E foi exatamente isso que aconteceu em “A Sábia Invisibilidade dos Poetas”, uma encomenda que recebi há alguns meses atrás.

A cena é uma típica paisagem brasiliense, aparentemente corriqueira. Mas está repleta de símbolos de proteção, pois a pessoa que me encomendou a pintura foi mais um entre muitos servidores públicos deliberadamente perseguido, caluniado e atacado nas redes sociais pelo então governo de Jair Bolsonaro e seus capangas virtuais.

A situação de vulnerabilidade sofrida pelo meu cliente acabou criando um elo de compreensão mutua independente do tempo de nossa amizade. Enquanto artista,  também fui perseguido institucionalmente, tive inscrições boicotadas em editais públicos e testemunhei a implosão de diversas parcerias governamentais construídas com muito suor ao longo dos últimos dez anos. De modo que o quadro se tornou  também um auto-retrato, e porque não dizer, um retrato de todos os poetas, artistas, professores, filósofos, ativistas, defensores do Estado Laico e funcionários públicos lutando pelo cumprimento da lei.

Se é impossível enxergar um horizonte, que andemos em périplos, façamos deste périplo nossa peregrinação cotidiana, até que se restaure a habilidade de sonhar um novo destino. Esta é a a “sábia invisibilidade dos poetas”, a paisagem onde me atrevi a pintar o próprio vazio, entrelaçando a Poética do Espaço de Gaston Bachelard com o Real Maravilhoso de Alejo Carpentier, ambas estratégias para resgate de antigas utopias.

É preciso tomar posse da realidade outra vez, usufruir da cidade mesmo  que deserta, mesmo sob a mira anônima dos que observam por detrás das janelas fechadas, dos que fingem ignorar nossa existência, dos que preferem conspirar. Muitas vezes, a saída não está nos pontos de fuga. Não está no panorama, mas nos detalhes. No limiar entre a raiz e a terra, nos reflexos abstratos da árvore no vidro, na pedra que mais parece brasa.

 O livro que a pessoa lê encostado nos espinhos da paineira é “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago.

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