O Alguidar de Doriva – uma homenagem ao Caymmi pintor
Se João Gilberto é o pai da bossa nova, Dorival Caymmi é o avô. E muito mais que isso. O soteropolitano foi, sem dúvida, uma das figuras mais influentes para a futura MPB, consagrando o Mar como um dos elementos fundadores do imaginário brasileiro, além de ter dedicado os mais belos versos à sua (nossa) tão amada Bahia, feito que lhe garantiu a justa fama de “retratista da alma do povo baiano”.
Entretanto, pouca gente sabe que o termo “retratista”, quando se trata de Caymmi, é um termo literal, ou melhor dizendo, um termo pictórico, posto que o compositor baiano era um pintor de mão cheia, com uma produção fecunda de desenhos a nanquim e grafite, além de uma série respeitável de quadros pintados à óleo, alguns deles, inclusive, poderiam constar no acervo dos principais museus brasileiros.
“O amor pela arte era tão grande que ele chegou a pensar em largar a carreira de músico, mas a minha avó Stella não deixou”, comenta a neta de Dorival, Alice Caymmi, acrescentando que o compositor era amigo de grandes nomes modernistas como Carybé, Portinari e Di Cavalcanti, frequentando seus ateliês e aprendendo preciosos macetes com eles.
A grande verdade é que Caymmi se mudou para o Rio de Janeiro na intenção de se projetar como desenhista e ilustrador. Mas as revistas da época não foram muito receptivas ao seu talento, e logo o jovem Dorival se deixou levar – para sorte da música – pela maré de seu talento como compositor. Em 1938, quando convidado para ceder a canção “O que É que a Baiana Tem?” para o filme “Banana da Terra”, estrelado por Carmem Miranda, Caymmi viu seu destino ser selado pelo enorme sucesso nacional e internacional que se abria a partir dali. As telas – sua paixão primeira – se tornariam um hobby, enquanto a carreira de músico o alçava ao patamar dos eternos, ao lado de Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola e Gonzagão, em uma época meio pré-histórica dos estilos musicais característicos da nossa cultura.
Origens
Reza a lenda que o seu primeiro desenho memorável foi o de um galo riscado a carvão na parede do quintal de sua casa em Salvador. Ali mesmo, seu pai conformava-se com as tendências artísticas do menino Dorival, suspeita que se fortaleceu quando o garoto foi escolhido como assistente do professor de Belas Artes do colégio onde estudava.
O contato permanente com o circuito artístico estimulou o baiano a pintar seu primeiro quadro a óleo, em 1943, portanto dez anos antes do lançamento do seu primeiro LP, Canções Praieras. Caymmi chegou a frequentar um Clube de Artistas célebre por reunir os futuros nomes do modernismo tardio, como Volpi, Rebolo e Pancetti, um privilégio inigualável para o compositor, ainda que ele nunca tenha realmente levado sua vocação tão a sério quanto os demais. De toda forma, Caymmi absorveu a mística da pintura, e ao longo dos anos, demonstrou que sabia muito bem o que estava fazendo nas telas.
Em uma de suas cartas a Jorge Amado, fica notório o envolvimento dele com os pintores:
“Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu, e Jenner imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e acarajés e gente em volta.”
Primeira Vernissagem
Mas foi apenas em Março de 1974 – cinquenta anos atrás – na idade de sessenta anos, e após muito apelo dos amigos, que Dorival Caymmi concordou em fazer sua primeira exposição individual, em uma galeria de Ipanema. Por conta de sua fama, a vernissagem foi disputadíssima, e as vendas, um sucesso. Os jornais da época noticiaram: “Caymmi pinta suas canções” sugerindo, equivocadamente, que os quadros eram representações pictóricas de suas músicas. Caymmi não gostou da analogia meio rasa, e fez questão de retrucar publicamente: sua dedicação aos pincéis era mais antiga, os processos criativos eram independentes entre si, e ele podia “tanto pintar suas canções como musicar seus quadros”.
E realmente haviam ocasiões em que tudo se misturava. Contou Caymmi que, certa vez, ele tentava pintar um auto-retrato defronte ao espelho, mas não conseguia um bom resultado de jeito nenhum. Após horas a fio e inúmeras tentativas frustradas, se aborreceu, largou a tela de lado, pegou o violão e em minutos compôs “Eu vou pra Maracangalha”, uma de suas músicas mais conhecidas. É curioso pensar que o vilarejo de Maracangalha tenha sido um refúgio para o imaginário poético do artista, após uma sessão mal sucedida de pintura, algo aliás bastante comum a todos os pintores.
A venda dos quadros da exposição em Ipanema lhe rendeu propostas de galeristas para que o compositor pintasse mais um conjunto de obras, a serem comercializadas na capital carioca. O êxito era praticamente certo. Porém, Dorival Caymmi reconhecia não ter a menor predisposição para o profissionalismo. Não suportava a ideia de contratos com marchands, nem de compromissos com datas ou encomendas.
“Se eu tivesse mais tempo, ia ser pintor e ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar… compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí…” ele costumava dizer, reafirmando que a tranquilidade era seu bem maior.
Ensaio Crítico
Ao contrário do Caymmi músico, é notória a falta de uma análise mais aprofundada de sua obra pictórica. Ao primeiro olhar, seus quadros parecem um tanto provincianos, quase naif. Mas ao nos determos nas imagens, percebemos que a aparente ingenuidade oculta uma poesia marcada pela atemporalidade, uma rara aptidão para perceber o essencial por detrás do cotidiano, “algo semelhante ao que fez Guimarães Rosa com o sertanejo.”
O recorte etnográfico foi uma marca registrada do movimento modernista brasileiro. Portinari, Tarsila do Amaral, Rego Monteiro, Lasar Segall, foram fortemente seduzidos pela busca do popular, muitas vezes em detrimento de uma inovação plástica mais audaciosa como acontecia nas vanguardas europeias do mesmo período. O caso de Dorival Caymmi é outro. Não estava atrás de nada exótico, não pretendia “resgatar” nada, estava plenamente inserido no bucolismo dos pescadores à beira-mar, ainda que também flertasse com outros emblemas típicos da Bahia, como as vendedoras de acarajé, os brincantes e os capoeiristas. Mas não havia um “programa sistemático”, como acontecia em São Paulo. Para Dorival, aquilo era simplesmente a vida. Se fosse preciso enquadrá-lo em algum estilo, este seria o Realismo, ainda que um realismo transbordante de candura.
Ele definia a si próprio como um lírico: “ Eu acompanhei toda essa querela entre o abstracionismo e o figurativismo. Mas não cheguei a uma posição definitiva. Sou um lírico em pintura. Gosto da harmonia das cores. Por outro lado, não posso me desprender da forma.”
Caymmi também tangenciava os mistérios da morte. Não poderia ser diferente para alguém tão ligado ao Mar. Algumas de suas pinturas – as melhores, na minha opinião – expressam configurações geométricas aludindo portais para o Além, sem falar nas divindades-sereias, também presente em seus quadros. O que para o Sudeste era “folclore”, na Bahia pintada por Caymmi era uma fenômeno indissociável do cotidiano praieiro, não exatamente aquela praia turística, mas a praia do alvorecer, do jangadeiro que se lança quilômetros adentro das águas, sem rádio, salva-vidas ou GPS.
Sobre isso, ele escreveu: “Os negros e mulatos que têm suas vidas amarradas ao mar têm sido a minha mais permanente inspiração. Não sei de drama mais poderoso que o das mulheres que esperam a volta, sempre incerta, dos maridos que partem todas as manhãs para o mar no bojo dos leves saveiros ou das milagrosas jangadas. E não sei de lendas mais belas que as da Rainha do Mar, a Inaeê dos baianos”
Este ponto cabe uma referência à obra literária “Os trabalhadores do mar”, do escritor francês Victor Hugo, situada em um tempo transitório, quando os barcos à vela foram substituídos pelos modernos barcos à vapor. Com isso, já não era mais necessário tantos conhecimentos das marés, dos ventos, das nuvens e outras sutilezas outrora indispensáveis a qualquer navegador. Bastava uma bússola, um mapa e o leme na direção correta, do resto a máquina industrial cuidava. A inovação, por um lado, reduzia o tempo das viagens, mas por outro, aniquilava saberes ancestrais, cuja subjetividade era captada no próprio alto-mar. Pois é nessa faixa cronológica, nesse estar no mundo, imaculado da necessidade de progresso, que Caymmi pintava, desenhava, escrevia e compunha.
De minha parte, vejo as pinturas de Dorival Caymmi fortemente marcadas pela experimentação. Em muitas situações, seu processo criativo assumia um viés abstrato, principalmente no trato da paisagem. O chão de Caymmi é uma mescla de cores meio aleatórias, que resultam em composições agradáveis aos sentidos. Sua qualidade maior estava na capacidade de resumir a anatomia humana às suas linhas gerais, sem virtuosismos, desapegado de tudo o que não fosse necessário para a representação. Frustrando todos os clichês do homem tropical, Caymmi fazia uso de uma paleta austera, de tons terrosos, quase sombrios, evocando uma atmosfera onírica, como se De Chirico resolvesse passar férias em um vilarejo perdido do litoral baiano.
Se caso ele decidisse levar a sério sua vocação, sem qualquer outro ofício – hipótese que chegou a quase se concretizar – Caymmi certamente se tornaria um mestre, aprimorando sua estratégia de geometrizar a figura e abstrair o fundo, unindo, na mesma imagem, o abstrato e o figurativo. Suas pinturas e desenhos contém um duplo valor: a redução formal e a celebração livre da matéria, uma característica típica dos artistas mais audaciosos.
Entretanto, isso não aconteceu. Caymmi pintava quando era possível, e mesmo assim, conseguiu alcançar alguns resultados notáveis, merecedores de uma atenção maior por parte dos críticos de hoje. Os mais céticos podem acusá-lo de praticar um mero pastiche de seus compadres Carybé, Pancetti, Portinari e afins. Seria um argumento plausível para um amador. A impressão, sob este viés, é que o compositor passou a vida homenageando o talento dos outros. Uma paisagem de Guignard, um pé ao estilo Di Cavalcanti, um mercado inspirado em Carybé, uma cabeça à moda de Léger, uma pitada de Matisse. Cabia de tudo no Alguidar de Doriva, o que de modo algum foi impedimento para que o compositor desenvolvesse uma assinatura própria, caracterizada pelo amor à Bahia e seu povo.
Oitenta anos depois do compositor ter pintado seu primeiro quadro, vivemos um momento especial no cenário das artes contemporâneas, quando enfim, artistas oriundos de segmentos minoritários ganham um espaço digno da grandeza de suas poéticas. Nesse contexto, talvez o Caymmi pintor possa vir a se tornar até mais vanguardista que seus amigos consagrados na História, posto que o baiano, com sua nobreza, a famosa gaiatice e um carisma além da média, soube estar no lugar, na hora e com as companhias certas para conhecer por dentro a majestosidade do Brasil Africano.