Retrospectiva Acústico-Pictórica de 2023: Ano de repolinizar as dimensões oníricas
2023 foi mais um ano difícil para a maioria das pessoas que eu conheço. Um ano que já começou com Brasília tomada por hordas trajadas de verde amarelo invadindo a Praça dos Três Poderes na base da paulada, clamando pela volta da Ditadura, esfaqueando as musas de Di Cavalcanti em meio aos estilhaços das janelas modernistas de Oscar Niemeyer. Ano de guerras, de crianças morrendo na Ucrânia, em Gaza, nas terras Yanomami. Ano de botos-cor-de-rosa chafurdando o lamaçal do que outrora seria um rio caudaloso. Nas cidades brasileiras, milícias comandando instituições de Estado, nas periferias, as mesmas balas perdidas atingindo os mesmos inocentes, dando aquela sensação amarga de que o mundo não mudou absolutamente nada depois da Pandemia que nos castigou de 2020 a 2022.
Aquela idéia, um tanto romântica, de que “sairíamos melhor do que éramos depois da covid” se revelou mera miragem idealista, ao passo que, paradoxalmente, atravessamos 2023 com uma incômoda sensação de que nada voltará a ser exatamente como estávamos habituados, em termos de perspectivas de felicidade. E para arrematar, Mãe Gaia nos brindou com insuportáveis ondas de calor, uma espécie de prelúdio do Apocalipse, porém sem a parte da chegada do Salvador.
Desacelerar o Virtual
E no meio disso tudo, me vi cansado de esperar por uma redenção, fosse ela política, espiritual ou ambiental. Decidi continuar lutando, sim, mas para dentro, na audaciosa empreitada de salvar minha própria capacidade sonhadora. O primeiro passo foi desacelerar meu avatar virtual. Menos engajamento, menos hashtags, menos trend topics, menos like. Burlar o algorítimo com as próprias mãos, voltar ao exercício das pesquisas, da investigação metódica, dos estudos focados, e enfim começar a ler as 2.957 pastas de Favoritos que aguardam um olhar mais atencioso desde, sei lá…2009.
Foi minha revolução pessoal deste ano. Comecei a garimpar sonoridades de ilhas remotas, tradições artísticas sumariamente desprezadas pelo circuito hegemônico da pós-modernidade, histórias latino-americanas que todos os brasileiros deveriam conhecer para se sentirem mais pertencentes ao continente. Também me dediquei a revisitar bandas de rock marcantes para minha trajetória, foi quando me deparei com um clipe da banda britânica Slowdive no Youtube, e constatei que – nessa altura do campeonato – eu poderia ser pai daqueles garotos, e como na época, a Rachel Goswell me recordava os desenhos a nanquim de Guido Crepax.
Quando o Slowdive apareceu em 1992, pensei se tratar de mais uma entre dezenas de bandas boas daquela época, em meio a My Bloody Valentine, Cocteau Twins, Lush, Jesus and Mary Chain e por aí vai. Mas logo percebi algo naquele som capaz de acessar emoções muito profundas, quase uma Barca de Caronte fluindo nos rios imaginários da alma, algo que reverberava como despedida, um adeus sem possibilidade de regresso, então eu acabei parando de escutar a banda. Literalmente, não tinha maturidade para lidar com Slowdive. E talvez ninguém tivesse, pois, de fato, seus álbuns meio que caíram no esquecimento, atropelados pelo gênero Grunge de Nirvana, Alice in Chains e Pearl Jam. Influenciados pelo hype (sempre ele) os críticos da época taxaram a molecada do Slowdive como autores de um som ultrapassado, de musicalidade datada. Mas logo o modismo grunge passou, as bandas de Seattle tomaram seus rumos e o Slowdive, ao menos para mim, se tornou mera lembrança de quando ainda acompanhava a cena do rock britânico, e me pautava pela estética gótica e shoegazer.
Mergulho na Caverna
Mas a mente humana é um grande labirinto repleto de tugúrios, como uma caverna sub-aquática, caverna submersa na lagoa. Dizem que não há nada mais perigoso do que mergulhar em caverna. As cavernas submersas são o ultimo estágio de qualquer mergulhador, pois é preciso uma delicadeza extrema para percorrer as galerias embaixo da água. Caso o mergulhador cometa um descuido, seu pé pode encostar na areia, e a areia se torna uma nuvem opaca, turvando qualquer possibilidade de encontrar o caminho de volta. É preciso, portanto, que o mergulho seja bem lento, slow-diving, como costumam chamar essa modalidade quase suicida de esporte. Foi onde me vi, ao escutar a banda trinta anos depois.
Comecei me lembrando daquele ponto específico de minha juventude, então com 17 anos… como a vida era repleta de utopias, desejos e revoluções em curso, como era fácil acreditar na Poesia e na Arte, e logo me entristeci, ao constatar que aquele mundo sonhado pelo jovem que fui está em plena contagem regressiva para seu próprio colapso. Então cometi um deslize, encostei o pé na areia da caverna, minha visão foi ofuscada pela argila, já não distinguia para onde era o Norte, o ar se tornou escasso e eu desapareci nas entranhas pétreas das minhas saudades. Acho que terminava de morrer ali.
Acordei em uma alameda repleta de árvores frondosas e moitas floridas. Caminhei por calçadas rachadas, esmiuçando cada metro quadrado daquela dimensão aonde havia renascido. Subi e desci por essa alameda inúmeras vezes, decidido a construir um refúgio onde poderia, a todo instante, vivenciar percepções idílicas em meio a Flamboyants e Guapuruvus.
As pessoas passavam por mim sem demonstrar nenhuma simpatia, como se eu as enxergasse mas elas ignorassem minha presença. Achei que havia me tornado invisível, mas logo percebi que todos ali não passavam de memórias corporificadas, signos criados pela mesma nostalgia, e portanto incapazes de me explicar o motivo daquilo tudo estar acontecendo. Não havia com quem falar, então eu apenas vagava, contemplando a beleza diáfana do bosque de minha morte.
Passei a coletar flores e ramalhetes, me distraindo com a criação de buquês coloridos e perfumados. Aos poucos, voltava a sorrir em meio a cidade deserta, mapeando os arbustos que existiam ali, me especializando na distinção das formas dos estames, pistilos, e pétalas. Fazia um calor tão extremo que eu me sentia consubstanciado no próprio fogo, tão incandescente quanto as erupções solares, comparsa do próprio El Niño, iluminado por aquela força que todos temiam, menos eu. Estava feliz assim, sendo minha própria raiz e fruto, sendo a flor que ninguém repara, o pássaro rasante na cabeça dos desavisados, a lágrima por aqueles que partiram, vítimas da cruel aleatoriedade do cosmos.
Se fosse fazer uma analogia, diria que saltei para dentro de uma pintura de Vincent Van Gogh em sua melhor fase. O Vincent de Arles, diante das cerejeiras em flor, mas no meu caso eram os Ipês Brancos, que em 2023 floresceram antes dos amarelos. Meu único desejo era o de permanecer ali para sempre, sem jamais cogitar sair daquele cenário primaveril. Que tudo ficasse para trás, que minha existência se cristalizasse em um eterno ir e voltar. Havia tanto a descobrir naquele curto perímetro, tantas possibilidades, tantas hipóteses do que o mundo poderia ter sido se acaso não fosse tão bruto.
Entretanto, algo inesperado aconteceu. O Sol estava no zênite quando avistei cinco silhuetas no fim da alameda, grisalhos como eu. Demorei um pouco para constatar que já os tinha visto antes. E mais, eram fruto de uma misteriosa dobradura no Espaço-Tempo, pois chegavam diretamente do Passado. Ou talvez eles nunca tivessem existido durante minha juventude, tudo não passou de um holograma vindo do Futuro, com a missão de plantar uma semente que hibernou trinta anos até florescer no Presente.
De toda forma o quinteto que eu subestimei em 1993 estava de volta à cena, não só para rememorar-me antigas sensações juvenis, mas lançando um novo álbum, “Everything is Alive”, agora considerado pela crítica como uma das grandes surpresas de 2023. Ao menos para mim, o Slowdive foi a banda do ano, não apenas pela qualidade musical, mas sobretudo pelo que representam quando o assunto é seguir criando de forma independente, abrindo-se para as mudanças do mundo sem deixar de ser fiel às próprias raízes, e jamais se abalar com as críticas ou expectativas do circuito. No fim das contas, o mergulho abissal nas águas lodosas da caverna se transfigurou em uma grande aventura pelas dimensões mais elevadas da estratosfera, um vôo sereno em busca da capacidade de sonhar e inventar histórias, um autêntico Nirvana cotidiano – e não estou falando da banda de Seattle.